quarta-feira, 23 de maio de 2012

Cristão deve fazer tatuagem?

Lembro-me de um semestre no seminário teológico em que lecionei por 9 anos quando passei como trabalho para os alunos que fizessem uma análise sobre o que significavam as obras da carne descritas em Gálatas 5. Dos cinco grupos, dois entregaram o material com uma capa onde havia fotos de pessoas tatuadas, com piercings, espaçadores de orelhas, cabelos pintados de verde e similares. Isso deixou claro para mim que esses elementos compõem, no imaginário geral do evangélico brasileiro, o arquétipo do que seria a pessoa mundana, pecadora. E é muitíssimo frequente essa questão vir à tona: cristãos podem se tatuar? É um assunto secundário e de menor importância para o Evangelho, mas como é um pedido recorrente nos comentários do APENAS que eu fale sobre o tema e como cresce a cada dia nas nossas igrejas o número de irmãos que ostentam tatuagens, farei uma análise bíblica, histórica e cultural da questão. Antes de continuar, só um registro: não sou tatuado nem pretendo me tatuar.
Antes de entrar pelo assunto em si explico por que disse que é “assunto secundário e de menor importância para o Evangelho”. Nos dias de hoje, em que a Igreja padece com o destemor dos seus membros, a falta de devocionalidade, o menosprezo pela oração, o posicionamento da leitura bíblica em segundo plano, a falta de amor ao próximo, a total irreverência pelas coisas de Deus, o uso de palavras torpes por pastores em púlpito visto com naturalidade, o mundanismo invadindo o santuário por todas as frestas, o desprezo pelo fruto do Espírito, a supervalorização e o mau uso dos dons, o esfarelamento do Corpo em facções e panelinhas… algo como aplicar tinta sobre a pele continua sendo visto como um assunto importante. Quando me perguntam se eu gostaria de visitar a Disneylândia, respondo: “Claro, depois de visitar 238 lugares antes”, simplesmente porque não tenho o menor interesse em gastar meu tempo naquele parque de diversões. Prefiro antes conhecer Israel, a Grécia, a Rússia, o Japão. Gosto de História, quero ver castelos e ruínas. Não desmereço quem acha a Disneylândia o must, mas para mim o interesse é mínimo. Do mesmo modo, muitos setores da Igreja acham que a questão das tatuagens está entre o top ten das preocupações de Deus. E quando vejo a falta de amor ao próximo, a egolatria e a agressividade que têm crescido assustadoramente entre os cristãos olho para o tema das tatuagens e penso “como isso pode ocupar tanto a preocupação de tantos? Há 238 preocupações maiores”. Mas tudo bem, vamos lá.
Biblicamente não há qualquer proibição a se tatuar. Sim, eu sei, aí imediatamente alguém se levantará para citar Levítico 19.28: “Pelos mortos não ferireis a vossa carne; nem fareis marca nenhuma sobre vós. Eu sou o Senhor”. A primeira vista, parece óbvio: Deus manda não fazer nenhuma marca no corpo, a tatuagem é uma marca no corpo, logo é pecado se tatuar. Só que para entender esse texto temos que entender o contexto.
Por que Deus estabeleceu essa norma para os israelitas? A resposta é que havia um povo, chamado caldeu, que tinha como hábito religioso cortar a carne de seus próprios corpos e fazer marcas com lâminas afiadas na pele como parte dos seus rituais aos falsos deuses que seguiam (a exemplo do que ocorre atualmente em muitas tribos africanas). Eram marcas que denunciavam idolatria. Em outras palavras, o que Deus está dizendo é que os hebreus não deviam cometer as práticas idólatras dos povos pagãos com que tinham contato. Se fosse em nossos dias, seria mais ou menos como dizer “Não poreis despacho na encruzilhada” ou “Não rezareis para santos mortos”.
Essa orientação era tão direta e específica para aquele povo que se formos ler o versículo imediatamente anterior, teríamos hoje de cumprir o que ele determina: “Não cortareis o cabelo em redondo, nem danificareis as extremidades da barba” (Lv 19.27). Bem, não vejo nenhum pastor pregar contra cabelos arredondados ou contra fazer a barba – pelo contrário, em denominações como a Assembleia de Deus é até mal visto usar barba, a ponto de a Casa Publicadora dessa denominação apagar no photoshop a barba de indivíduos cujas fotos são publicadas em seus jornais e revistas.  Ou, ainda, teríamos hoje de guardar o sábado, visto que dois versículos depois, em Levítico 19.30, Deus especifica: “Guardareis os meus sábados e reverenciareis o meu santuário. Eu sou o Senhor”.  O contexto hermenêutico deixa claro que eram leis específicas para os israelitas daquela época e o contexto cultural mostra a razão de o Altíssimo proibir marcas nos corpos: não cometer as práticas religiosas idólatras dos povos vizinhos. Não tem rigorosamente nada a ver com tatuagens não-rituais e muito menos Lv 19.28 se aplica à Nova Aliança.
A conclusão é que, biblicamente, não: o ato de se tatuar em si não constitui pecado.
Ok, agora virá alguém e dirá que nosso corpo é templo do Espírito e que fazer tatuagens nele seria pecar contra o mesmo. A esse respeito há alguns aspectos: primeiro, se fazer qualquer coisa que prejudique nosso corpo é um atentado contra o templo, não poderíamos comer comida salgada, ingerir açúcar (muito menos adoçantes), comer pizza (cheia de gordura que causa obesidade e entope artérias), tomar refrigerante (das coisas que ingerimos uma das mais maléficas) ou comer torresminho (um pedido explícito para se ter um AVC). Comer no McDonald´s então seria pecado sem perdão. Logo, devemos olhar esse argumento com muito cuidado. Segundo, no contexto de 1 Coríntios 6.19, que diz “Acaso não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo que habita em vocês, que lhes foi dado por Deus, e que vocês não são de si mesmos?”, o que está sendo tratado aqui são questões de natureza sexual.
Veja os versículos anteriores, a partir do 15: “Vocês não sabem que os seus corpos são membros de Cristo? Tomarei eu os membros de Cristo e os unirei a uma prostituta? De maneira nenhuma! Vocês não sabem que aquele que se une a uma prostituta é um corpo com ela? Pois, como está escrito: “Os dois serão uma só carne”. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele. Fujam da imoralidade sexual. Todos os outros pecados que alguém comete, fora do corpo os comete; mas quem peca sexualmente, peca contra o seu próprio corpo”. E aí vem o versículo em questão: “Acaso não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo que habita em vocês, que lhes foi dado por Deus, e que vocês não são de si mesmos?”. Logo, o que está sendo discutido aqui é o corpo como santuário do Espírito de Deus no que tange à imoralidade sexual, não tem nada a ver com tinta aplicada sobre a pele.
Sob o aspecto cultural, a repulsa que a Igreja sempre mostrou a essa prática vem do fato que, até algumas décadas atrás, nas sociedades ocidentais, os grupos que se tatuavam geralmente apresentavam um comportamento bastante mundano. Eram, em especial, marinheiros, que quando aportavam em alguma cidade podiam ser vistos em prostíbulos ou bastante bêbados, com atitudes bastante réprobas. Logo, sempre que a sociedade “bem-comportada” via essas pessoas tatuadas era em situações de devassidão, mau exemplo ou pecado. Assim, essa visão foi sendo passada de geração em geração e, para um grupo como os cristãos, para quem prostituição e beber álcool são o supra sumo da pecaminosidade, gente tatuada passou a ser sinônimo de gente pecadora. Só que o problema desses indivíduos não eram as tatuagens, era seu comportamento antibíblico.
O tempo passou e nos nossos dias a tatuagem perdeu essa conotação. Hoje há muitas e muitas pessoas de vida honesta que se tatuam. A associação de tatuados com baderneiros arruaceiros e gente de má fama deixou de existir. Então, com o passar do tempo, na sociedade ocidental aplicar pigmentos sobre a pele perdeu aquele aspecto negativo de décadas e séculos passados. Mas, por uma tradição cultural, as novas gerações herdaram das antigas que se tatuar é sinônimo de devassidão anticristã e por isso, sem conhecer as origens da questão, dão continuidade ao que aprenderam de seus pais, sem nem ao menos saber explicar as razões. Bem, aqui expliquei.
Portanto, não podemos dizer que biblicamente ou culturalmente haja condenação para o uso da tatuagem.
Mas, antes que os tatuados saiam dando gritinhos de alegria, temos que dar atenção a outros fatores, em especial no meio cristão. É de suma importância aos olhos de Deus a unidade do Corpo. Por isso, em diversas passagens da Bíblia somos alertados que existem coisas que “são lícitas mas não nos convém”. Devemos estar atentos para não levar os irmãos à murmuração, ao escândalo, ao julgamento. Muitas vezes o fazem por tradição, outras por ignorância ou mesmo por diferença de gerações, mas, indepentente da razão, o que importa é termos paz com todos. Romanos 8.13ss, nos alerta: “Portanto, deixemos de julgar uns aos outros. Em vez disso, façamos o propósito de não colocar pedra de tropeço ou obstáculo no caminho do irmão. Como alguém que está no Senhor Jesus, tenho plena convicção de que nenhum alimento é por si mesmo impuro, a não ser para quem assim o considere; para ele é impuro. Se o seu irmão se entristece devido ao que você come, você já não está agindo por amor. Por causa da sua comida, não destrua seu irmão, por quem Cristo morreu. Aquilo que é bom para vocês não se torne objeto de maledicência”.
Repare as palavras de Paulo: é mais importante não gerar maledicência ou escândalo entre os irmãos do que fazer aquilo que não tem nenhum problema segundo a Bíblia. O mesmo ele repete pouco depois, no capítulo 14: “Como alguém que está no Senhor Jesus, tenho plena convicção de que nenhum alimento é por si mesmo impuro, a não ser para quem assim o considere; para ele é impuro. Se o seu irmão se entristece devido ao que você come, você já não está agindo por amor. Por causa da sua comida, não destrua seu irmão, por quem Cristo morreu. Aquilo que é bom para vocês não se torne objeto de maledicência. Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo; aquele que assim serve a Cristo é agradável a Deus e aprovado pelos homens. Por isso, esforcemo-nos em promover tudo quanto conduz à paz e à edificação mútua. Não destrua a obra de Deus por causa da comida. Todo alimento é puro, mas é errado comer qualquer coisa que faça os outros tropeçarem. É melhor não comer carne nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa que leve seu irmão a cair. Assim, seja qual for o seu modo de crer a respeito destas coisas, que isso permaneça entre você e Deus. Feliz é o homem que não se condena naquilo que aprova”.
O que essas passsagens nos dizem? Tatuar-se biblicamente é pecado? Não. Tatuar-se culturalmente no Brasil é sinal de devassidão moral? Não. Mas ainda há aqueles que se escandalizam ao ver na igreja quem se tatue? Sim. Portanto, o grande problema de o cristão se tatuar não passa por “poder ou não poder”, passa pelo amor ao próximo.
É o mesmo caso de mulheres usarem saias ou calças em igrejas mais conservadoras. Esse hábito surgiu porque décadas atrás, no início do século 20, calça era roupa exclusivamente de homens. Absolutamente todas as mulheres no Brasil usavam saia. As décadas se passaram e a calça, entre os anos 50 e 60, deixou de ser traje exclusivo de homens e foi adotado pelas mulheres. Ninguém mais se escandaliza em nossa sociedade ao ver uma mulher, por exemplo, de terninho. Porém, nessas igrejas o costume foi passando de geração a geração, os mais antigos foram morrendo e os mais novos, sem saberem explicar a origem da proibição de calças na igreja por mulheres apenas mimetizam o que aprenderam, sem saber as origens ou as razões. E aí criamos um bando de estranhos ao século 21, que acreditam que mulher usar calça é pecado – quando não é, se for uma calça decorosa.
Mas, do mesmo modo que a tatuagem, se você opta voluntariamente por ser membro de uma congregação onde a norma seja a mulher usar saia, se usar calça estará sendo desobediente às regras da assembleia onde está e, portanto, em rebeldia – e pecará por levar os irmãos ao escândalo e à murmuração.
A conclusão é: se o meio que você frequenta tem usos e costumes, não afronte, faça parte. Se discordar, saia e procure outro meio. Ou fique, adote o hábito e tente com amor ir influenciando os irmãos no conhecimento da verdade. O confronto jamais é o caminho. Por uma razão simples: é pecado.
E há ainda alguns pontos a ponderar. Aqui tomo por base um texto muito bem refletido publicado no blog de Nathan Joyce (foto à esquerda), Pastor do Heartland Worship Center, em Paducah (EUA) e divulgado no twitter pela irmã Francine Veríssimo (@FranVerissimo_), de quem tirei as boas reflexões que acrescento abaixo. O artigo, originalmente em inglês, chama-se “O que tatuagens realmente dizem”. Após mencionar que estimados 45 milhões de estadunidenses hoje são tatuados, o autor lembra alguns pontos relevantes:
1. Você vai envelhecer e se tornar um avô ou avó. E ninguém quer identificar seus avós como aqueles que têm “uma caveira ou arame farpado”.
2. Lembre-se que, na medida em que envelhece, seu corpo muda. Sua tatuagem vai acompanhar as mudanças. Cuidado, pois ao passo que sua pele se torna mais flácida, a borboleta em seu ombro pode se transformar num pterodáctilo e sua rosa pode virar o planeta Saturno.
3. De jeito algum tatue o nome de um namorado ou noivo. Se o relacionamento acabar, seu futuro marido ou esposa não vai gostar nada disso.
Joyce se pergunta por que afinal alguém precisa tanto se tatuar. Tatuagens dizem algo a nosso respeito. Que necessidade tentamos suprir com elas? Qual é a psicologia das tatoos? Mais ainda: qual é a espiritualidade delas? E ele apresenta sua conclusão: as pessoas se tatuam porque desejam desesperadamente pertencer e se expressar. Desejamos ter vidas que digam algo, queremos nos identificar com algo publicamente e nos marcar permite que nos expressemos e nos identifiquemos com a imagem de nossa escolha. Certo ou errado, é uma tentativa de realizar uma necessidade humana. Uma vez que se tatua, você assumiu um compromisso de longo prazo com uma imagem que para sempre vai marcá-lo, ou seja, identificá-lo e expressar algo a seu respeito para os outros. Ou seja: nos etiquetamos.
E ele continua: “De onde vem essa necessidade? Do fato de que fomos feitos à imagem de Deus, que também ama o pertencimento e a autoexpressão. Mesmo antes da Criação, Deus se identificava e pertencia à Trindade e a Criação é uma autoexpressão de Deus. E assim o Senhor nos criou do mesmo modo. Somos incompletos, a menos que pertençamos a algo ou alguém – nosso desenvolvimento depende disso. Os humanos também almejam uma vida que expresse legado. O problema é que o pecado atrapalhou todo o processo. Por causa dele, nossa busca por identificação tornou-se tóxica e compulsiva e nossa necessidade de autoexpressão deixou de ser motivada por amor, mas por desejo de grandeza e egocentrismo. Nossa cultura ama se expressar, não porque desejemos amar o próximo por meio dessa expressão, mas porque amamos ser o centro das atenções”. No final, essa profunda necessidade humana de pertencimento e expressão não será alcançada por meios humanos – somente quando o amor passar a habitar em você. E não qualquer tipo de amor, mas o amor de Cristo. Esse amor lhe convida a pertencer a um Deus eterno e a expressar Seu amor e Seus propósitos eternos.
Ao final, Pastor Joyce tem uma magnífica epifania: tatuado ou não, o amor é a marca que identifica você com Cristo. Um amor expressado por boas obras em benefício do próximo deixa uma marca que jamais se apagará.
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
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OBS: Texto extraido do Blog "APENAS":  http://apenas1.wordpress.com
          Autor: Maurício Zágari

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